ISABEL SOARES
FILHA DO MÁRIO
SOARES
Incomensurabilidade
Terá passado pela
cabeça de António Costa que a aproximação do PS à esquerda poderia ser um
processo simples, linear, para aplicação imediata e sem consequências de maior
para o seu partido?
A
incomensurabilidade é um conceito importante em ciência e filosofia. Diz-nos
que não se podem comparar ou somar de alguma forma coisas que são
qualitativamente diferentes. Mas em política, a julgar pelos nossos políticos e
comentadores, tudo é comparável e todas as diferenças são encaixáveis numa
qualquer bitola comum.
A primeira vez que
senti um forte desconforto com esta tendência para comparar coisas que na minha
modesta opinião são incomparáveis, foi há muitos anos, quando via o Professor
Marcelo Rebelo de Sousa dar notas aos políticos. Ficava abismada e irritada
quando ele dava, por exemplo, um catorze a Álvaro Cunhal e um quinze a Cavaco
Silva ou a Mário Soares, ou vice-versa, e nunca consegui livrar-me da má
impressão que tal espectáculo me causava. Não pelo valor das notas em si, mas
pelo facto de ele por no mesmo plano realidades (no caso, pessoas) que não
tinham nada de comum entre si. E achava profundamente deseducativo e indutor de
erro tal perspectiva, para mais divulgada amplamente numa televisão
generalista.
Ao longo do tempo
fui tendo em diversas ocasiões a mesma sensação de desconforto, e ainda
bastante recentemente isso aconteceu quando ouvi de vários comentadores
políticos de diversos quadrantes elogios à actuação de Mariana Mortágua na
Comissão de Inquérito ao caso BES. Como se qualquer posição expressa por um
qualquer político pudesse ser descontextualizada do resto das suas posições e
avaliada isoladamente.
Volto a sentir o
mesmo desconforto no momento actual com a aparente facilidade com que se admite
constituir uma maioria de esquerda para governar, somando os votos dos
respectivos partidos. Não me estou a referir aos dirigentes partidários dos
partidos em questão, porque esses não me surpreendem quando tentam chegar ao
poder de qualquer maneira. Isso só mostra que nos últimos quatro anos alguma
coisa foi feita para mudar Portugal, e é isso que eles querem travar.
Refiro-me a alguns
comentadores e a gente comum. Somar os votos de partidos diferentes após as
eleições pode ser legítimo ou não. No caso de partidos relativamente próximos
em termos de matriz ideológica, cultural, ética e de tradição não vejo nenhum
problema com isso. Já quando se trata de partidos com uma matriz
substancialmente diferente e que ao longo da sua história estiveram
frequentemente em barricadas opostas, como é o caso dos três partidos da
esquerda portuguesa actual, a minha opinião é outra.
Aquilo que separa
partidos da social-democracia europeia, como o Partido Socialista, dos partidos
de matriz marxista-leninista ou comunista, é muito profundo, ou, pelo menos,
julgava eu que era. É toda uma história e uma postura cultural, ética, de valores
básicos sobre a organização económica, social e política da sociedade que estão
em causa. É impossível que não haja muitos eleitores socialistas a sentirem-se
desconfortáveis com a actual aparentemente fácil aproximação entre o PS e o PCP
e BE.
Os votos destes
três partidos não são, nunca foram e não serão adicionáveis, pelo menos, num
futuro próximo, ou eu estou muito enganada. Seria muito mau sinal se um
processo desses acontecesse de forma linear, sem muitas curvas e contra-curvas,
sem voltas e reviravoltas.
O PS carrega,
talvez mais do que qualquer outro partido em Portugal, espero eu, a menos que
tenha sofrido alguma forma de amnésia colectiva, o que foi a nossa história e a
história da Europa do último século, e em particular dos últimos quarenta anos,
com todos os seus conflitos, alguns deles profundos e violentos. E para além
disso, tem muitos militantes provenientes do PC, o que neste aspecto pode ser
uma faca de dois gumes.
Estes factos não
podem deixar de dotar o PS com o lastro de complexidade íntima que lhe permita
resistir a algum dirigente menos avisado e mais simplista como parece ser o
caso de António Costa.
Terá passado pela
cabeça de António Costa que a aproximação do PS à esquerda poderia ser um
processo simples, linear, com resultados rápidos, para aplicação imediata e sem
consequências de maior para o seu partido? Se for isso que vier a acontecer, é
um muito mau sinal de degradação da vida pública portuguesa.
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